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Notas tópicas sobre ideias utópicas
1. As utopias fascinam. O fascínio é feito de ignorância, pelo menos parcial. Prefiro considerar as utopias, todas elas, com Cioran, uma forma de ingenuidade, se não mesmo de loucura. A faculdade que se lhe deve votar é antes o ceticismo. Independentemente da mais corrente das atitudes.
2. A mais antiga utopia, e que se encontra permanentemente no passado, é o do “jardim fechado”, o paraíso terrestre que abandonámos; a Idade de Ouro, Atlântida, o ventre materno, são suas variações. As mais recentes, que vieram com a modernidade, apontam ao futuro, um futuro qualquer, e podem revestir-se do mais maleável e fantástico dos plásticos e tecnologias tanto quanto retornar a um estado da Natureza (que jamais existiu): expressa-se nos mais diversos graus de natureza política (-ismos.1) ou artística (outros –ismos.2). O facto de poder dizer “utopias” e inventariar os seus autores esbate a força de cada uma.
3. A própria palavra parece prometer um lugar cuja única certeza que nos oferece é que “não é aqui” Impelindo-nos, portanto, a um movimento de viagem ou a um gesto de construção. Bebendo dos ícones de ambos os tipos de –ismos referidos acima, Oscar Martinez expressa esse estímulo, com um grão de sal de ironia.
4. A faceta brilhante da utopia é permitir ver e pensar para além das coisas “tal qual elas são”, ou seja, não aceitar sequer a possibilidade de as coisas serem alguma coisa de certo. Assim, podemos imaginá-las (torná-las imagem) como cidades visíveis ou ocultas, ilhas de meios-dias ou Laputas, enseadas amenas ou portos blindados, terras do Nunca: Joana Silvestre contorna-as a lápis.
5. De utopia deriva eutopia – “boas” utopias, que se confunde com o primeiro termo, sede do que passou, plano para o que virá – e distopias – “más” utopias, quer as da ficção, quer as que se vieram a provar por terem sido implementadas (novamente os –ismos, mormente os .1); são as terras do Nunca-mais-outra-vez ou do Esperemos-que-nunca: Tiago Martins, d’aprés Huxley, ilustra-as, falsamente felizes.
6. Se não é aqui, mas ali, tem de haver melhores galinhas no campo da vizinha. Simples variação do João-que-ri e João-que-chora, Vasco Martins mostra que, de facto, rir não só é o melhor remédio como mais vale um riso no ar do que dois chorares na mão.
7. De todas estas topias, há ainda as heterotopias, “espaços outros” (Foucault). A banda desenhada e a ilustração, por viverem um tanto ou quanto fora do círculo maior do diálogo das artes – não por fraqueza sua, mas por falta de rigor do olhar ecuménico dessas mesmas artes -, acabam por se constituir numa heterotopia, um alhures no qual ainda se podem experimentar determinadas linguagens que se têm afastado de outros meios (a emoção, a figuração redonda, a plena narrativa), e também no qual já se procuram efetivar conceitos inalcançáveis por agora (corpos perfeitos, sociedades futuras, ciências livres, deslimitação de praticamente tudo, a fantasia na rua).
8. Maria Imaginário abre espaço a esse espaço: sob a ilusão de pequeno conto para os mais pequenos, o delicodoce imaginário oculta qualquer coisa de mais negro, de podre, de esquisito, ainda que não saibamos o quê.
9. Aviso à navegação: muitos se preocupam e querem impedir o 1984, de George Orwell, de acontecer. Não há problema, é impossível realizar-se. Já O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, é que já vingou. CCTV, chip e Cartão de Cidadão. Fia-te na virgem e não corras.
Pedro Moura